terça-feira, 23 de março de 2010

A Cúpula de Cancun na Política Externa Brasileira: redefinições ou continuidades?

Os resultados declarados da segunda reunião de cúpula da América Latina e Caribe, realizada nos dias 22 e 23 de fevereiro, na cidade mexicana da Cancun, e a recente movimentação da Argentina em direção às Malvinas traze, com pertinência, alguns questionamentos sobre a política externa brasileira para o seu entorno imediato. Em primeiro lugar, o Brasil estaria buscando uma nova redefinição do seu horizonte regional, frente a possíveis obstáculos do projeto sul-americano e de sua estratégia mais ativa de projeção internacional como potência emergente? Em segundo lugar, estaria mudando a postura brasileira em defesa de uma reforma na atual ordem para uma mais ampla revisão das instituições e questionamento do posicionamento dos atores do centro do sistema?
Uma análise prudente sugere que a resposta para ambas as questões será negativa.
A partir dos anos 1990, o Brasil passa a cunhar a sulamericanidade como elemento regional da sua identidade internacional. Define-se a América do Sul como plataforma preferencial para a inserção internacional do país, em detrimento da América Latina ou do Cone Sul.
Essa opção brasileira, impulsionada também por fatores sistêmicos do pós-guerra fria, notadamente o ressurgimento dos blocos regionais, a criação do NAFTA e a atuação dos Estados Unidos na América Latina, converte-se em um projeto concreto de construção da América do Sul enquanto região que fizesse sentido para além da sua significação geofísica. Nessa linha, várias iniciativas são colocadas em marcha, englobando desde integração da infra-estrutura regional até a cooperação em termos científicos, tecnológicos e culturais.
A América do Sul converte-se em projeto brasileiro através da institucionalização do multilateralismo regional com a criação da União Sul-americana de Nações, UNASUL. A UNASUL, herdeira da Comunidade Sul-americana de Nações, CASA, é parte essencial do projeto brasileiro para a região, de lugar central na sua estratégia de inserção internacional.
Nesses termos, o apoio brasileiro à criação de uma nova instituição latino-americana, conforme apresentado na reunião de Cancun, poderia ser entendido como uma revisão da sua estratégia regional. Críticos ao governo Lula e à sua política externa apressam-se em apontar o que seria um escape a falta de avanços concretos na sua política regional imediata ou sinais de um exercício de megalomania da sua diplomacia alimentado pelo status de celebridade internacional alcançado pelo Presidente, que avança desfocadamente sobre áreas e temas que não deveria se insinuar.  
Todavia, o grau de generalização da proposta apresentada na reunião do México e o conseqüente tempo de maturação do projeto indicam que não há substituição de estratégias. O projeto prioritário brasileiro para a integração regional continuará sendo a UNASUL.
Tanto que o apoio brasileiro à nova instituição, embora tenha ocorrido, não foi efusivo. Não houve nenhuma declaração do Presidente ou de seus assessores diretos com relação ao tema. Nas notas à imprensa do MRE sobre o encontro, não havia menção à criação de uma nova instituição regional[1]. À primeira luz, parece, sobretudo, uma iniciativa mexicana, que viu sua economia encolher 6,5% em 2009 por conta do atrelamento à economia estadunidense e percebe a necessidade de ampliar o horizonte de sua projeção internacional. Iniciativa que ganha eco estridente dos chefes de estados esquerdistas bolivarianos da América Latina, como Chávez, Correa e Morales, ou a própria Cuba, que já resignificam a iniciativa à sua moda de afronta regional à tradicional presença dos EUA na América Latina.
O Presidente Lula, em fim de mandato, não poderia apagar as luzes da sua política regional contrariando a maré da maioria. Quando a nova instituição for criada, se conseguir cumprir o prazo estabelecido em Cancun, Lula não estará mais em cena como o personagem principal, ainda que sua atuação nos bastidores ou em outros palcos internacionais ainda possa ser importante. Não pode ser acusado de não ouvir os vizinhos, mas, conhecendo o que dizem, sabe que do discurso à prática o caminho é complicado.
Lula logo tratou de negar que a nova instituição seria uma afronta aos EUA, mostrando maturidade da postura brasileira e a revelando que a abertura de novas frentes não significa o encerramento de relacionamentos tradicionais. Segundo o presidente, "ninguém é ingênuo para criar ruptura com os EUA ou União Europeia, até porque sabemos a importância dos Estados Unidos na relação com todos os países, tanto comercial quanto política. Nós queremos manter esta boa relação. Nós queremos ainda que, mantendo esta boa relação, ter um espaço de discussão entre nós mesmos, falando da nossa realidade e construindo uma nova realidade para nós, para manter espaço"[2]
Ainda, a nova instituição, embora não tome o lugar prioritário das relações regionais do país, também não a contraria. A atenção ás normas internacionais enquanto traduções concretas da ordem internacional, concentradora, atual, recomenda a prudência quanto à atuação das agências internacionais tradicionais, bem como a busca de alternativas institucionais que dêem voz aos emergentes. Essa análise sombreia a atuação internacional do país, mais escaldado quanto ao multilateralismo global e promotor da institucionalidade regional.
Nessa mesma linha, a permanente construção do bloco sul-americano, projeto necessariamente de longo prazo, enseja o entendimento prioritário brasileiro-argentino-venezuelano, as três maiores economias sul-americanas, que esse entendimento seja acompanhado por boas relações com os demais vizinhos, e que tudo isso seja institucionalizado.
A UNASUL responde ao último ponto. O reconhecimento, em primeira ordem, das assimetrias entre os países da região, bem como as soluções encontradas ou ainda em construção nas relações com a Bolívia e Paraguai, principalmente, dão indícios que a relação do Brasil com os países menores não estão sendo negligenciadas. Enfim, a posição brasileira, ladeando a Argentina na sua reclamação quanto à mudança de atitude da Inglaterra nas Malvinas, agora buscando efetivar a exploração de Petróleo, trata de consolidar o primeiro ponto, numa pauta da mais alta importância política para os Argentinos.
Isso não significa que ocorrerá uma nova ação militar nas Malvinas. A disposição para mediação, diálogo e negociação, em favor dos interesses dos emergentes, países do sul ou periféricos, parece ser a marca pessoal que o presidente Lula quer deixar no palco internacional. Sua pretensão de continuar atuando na política internacional, seja em favor da África, América Latina, ocupando um cargo onusiano ou em alguma organização internacional de presença relevante – embora pareça não ter aceitado a sugestão de Chávez de ficar à frente da nova organização[3] – confere utilidade prática à sua marca. E, nessa linha, a declaração do presidente Lula aproxima a argentina do Brasil, sem amarrar o Brasil à argentina, mas alinhando o interesse dos dois, e da América do Sul em geral, para discussões e negociações de peso no cenário internacional. É a continuidade de um processo de afirmação da região como um bloco no sistema internacional multipolar que se configura, e não mais como sub-região submissa à atuação de uma potência e de seus aliados.



[1] Ver notas à imprensa do Itamaraty sobre a Cúpula de Cancun, disponíveis em http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/index3.asp
[2] Lula volta a defender o Irã na Cúpula do México, Revista Veja, disponível em  http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/lula-volta-defender-ira-cupula-mexico-535467.shtml
[3] Para Lula, crise econômica contribui para sucesso da cúpula, em edição on line de O Estado de São Paulo, de 23.02.2010, disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,para-lula-crise-economica-contribuiu-para-sucesso-da-cupula,515182,0.htm

segunda-feira, 8 de março de 2010

Neo-desenvolvimentismo X estado logístico

Muitas vezes, as percepções de continuidades e rupturas em determinadas políticas públicas dependem exclusivamente do nível de análise do observador. Quanto mais afastado do objeto, a visão tende a perder nitidez, os detalhes escapam e um borrão genérico envolve todo o cenário. E, conquanto as nuances não sejam explícitas, as generalidades nivelam as opções, afinal, do céu, a floresta toda parece um mar de verde, não se consegue distinguir as árvores pelo formato das folhas.

Esse parece ser o equívoco de alguns conceitos interpretativos da história política e econômica brasileira, inclusive, e particularmente, da sua política exterior. A política externa para a América do Sul concebida e executa pelo Governo Lula, por exemplo, é inequivocamente distinta da empreendida pelo seu antecessor, mesmo se considerarmos apenas o segundo mandato de Cardoso, no qual se considera que a política externa tenha sido mais ativa para a região, ainda que os dois tenham conferido à região um status prioritário na estratégia de inserção internacional do país.

A despeito disso, alguns elementos-chave para a tentativa de racionalização acadêmica do entendimento da atuação do estado persistem ao longo do tempo, sobrevivendo a mudança de governos, regimes e partidos políticos. Não poderia haver exemplo melhor disso do que a insígnia do desenvolvimento como norte da nação.

O desenvolvimento esteve no centro do modelo nacional-desenvolvimentista que se sobressaiu no estado brasileiro na maior parte do século XX. Mas o desenvolvimento não saiu do horizonte na alvorada e no crepúsculo do (neo)liberalismo que se insinuou na nossa paisagem na última década do século passado. Todavia, as estratégias para alcançá-lo eram, definitivamente, outras. Outras, que, a bem dizer, por manterem o desenvolvimento como norte, também poderiam ser chamadas de neodesenvolvimentistas. Afinal, era o desenvolvimento da nação sendo buscado por meios inovadores de desregulação, desestatização, introspecção de normas e receituários internacionais na legislação nacional.

O avanço com relação ao período anterior consolidado no governo Lula, principalmente no seu segundo governo, insere-se num contexto de amadurecimento da sociedade nacional, a partir da crítica ao período imediatamente anterior, mas também, e talvez principalmente, numa realidade social e econômica distinta daquela vivida pelo país em meados do século passado.

Tentar rotular, nessa linha, a estratégia de continuidade do seu governo como neodesenvolvimentista, traz, a meu ver, dois erros. Primeiro, limita a visão de mundo e a percepção da realidade e, segundo, provoca um debate desnecessário com os setores conservadores.

Nesse ponto, a construção do Prof. Amado Cervo do paradigma de Estado Logístico me parece mais adequada para a estratégia da candidatura governista. O rótulo do Estado logístico, como propaganda, poderia, inclusive, soar mais moderno, para dizer coisas muito semelhantes ao do "novo-desenvolvimentista", e sem a pecha "intervencionista", "Chavista" ou "anacrônica" a que a mídia e analistas começam a fazer uso.
Recomendo, nessa linha, os textos "Relações Internacionais da América Latina: Velhos e novos paradigmas", e "Inserção Internacional: Formação dos Conceitos brasileiros", ambos do Prof. Cervo.
Lembro-me também de ter aprendido com o professor Campolina que o Estado não pode ir contra o mercado. Deve apoiá-lo onde houver convergência, e na divergência deixá-lo caminhar com suas próprias forças. Não se trata de afrontar ou sufocar o setor privado, pois isso leva, muitas vezes, a embates sociais que põem em risco a própria democracia.

E o estado logístico opera dessa forma. Impulsiona, incentiva, apóia as empresas brasileiras a ganharem fôlego e a competirem internacionalmente. Valem também as palavras de Pochmann de que, em algumas décadas, "a economia mundial será dominada por cerca de 500 megaempresas. Quantas empresas o Brasil terá?" E, para isso, o Estado é necessário. O Estado logístico também não se exime de ir onde o mercado não tem interesse, de investir em infra-estrutura, de usar seus instrumentos para promover a pesquisa, mas, sobretudo, se faz presente na mediação dos interesses entre setores de uma sociedade cada vez mais complexa, num ambiente internacional, da mesma forma, cada vez mais complexo.

Mais do que um nome, ou pura questão de forma, o conceito revela um conteúdo que, a meu ver, expõe de forma clara as linhas de uma política que já vem sendo implementada pelo atual governo. Mas, ainda assim, me atrevo a dizer que, em termos de marketing, poderia também ser uma boa escolha. Ainda que possam significar coisas muito semelhantes, enquanto um olha para o futuro, o outro está preso às referências de um passado que, embora possa se considerar positivo, pode insinuar imagens confusas, ainda mais se distorcidas pelo intermediador das mensagens, de forte ranço conservador.